Material tem o objetivo de chamar a atenção dos advogados sobre as doenças e patologias que afetam a saúde mental
Falar sobre os transtornos mentais é uma forma de acabar com o preconceito em torno do assunto e estimular que os indivíduos cuidem da saúde mental. Essa é uma das ideias sustentadas neste ano pela campanha Setembro Amarelo, que fomenta ações de prevenção ao suicídio. De acordo com o site oficial, são registrados cerca de 12 mil mortes intencionais todos os anos no Brasil e mais de um milhão no mundo. Cerca de 96,8% dos casos estavam relacionados a transtornos mentais, como a depressão, seguida do transtorno bipolar e abuso de substâncias.
Dados da Associação Americana de Psicologia apontam que os advogados, bem como juízes e promotores, sofrem de depressão 3,6 vezes mais do que do que profissionais que não trabalham como juristas. Além disso, um recente estudo realizado com 12.825 advogados americanos verificou que 28% da amostra apresentava critérios para depressão, 19% para ansiedade, 23% para estresse e 20,6% fazia uso problemático de álcool.
Para falar sobre o tema, a Associação Nacional dos Advogados da Caixa Econômica Federal (Advocef) conversou com a conselheira do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Sandra Kieger, que é autora da Cartilha Saúde Mental da Advocacia. O material elaborado com o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem o objetivo de chamar atenção dos advogados e advogadas para o assunto e preservar a saúde dos profissionais.
“A Cartilha da Saúde Mental da Advocacia nasceu, justamente, de um grande objetivo: falar sobre os transtornos psíquicos que nos afetam e, falando sobre isso, permitir que as pessoas enxerguem a situação com um outro olhar porque já existe muito preconceito em torno disso”, diz Sandra.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre 2012 e 2018, os transtornos mentais foram os principais motivos para afastamentos no trabalho na área jurídica no Brasil, representando 30% dos casos entre advogados e 60% entre procuradores. Com relação aos magistrados e servidores, o problema foi terceira causa de afastamento por doenças em 2018.
Além de expor as questões sobre as doenças e patologias que afetam a saúde mental, a conversa propõe formas de lidar com os problemas. Sandra Krieger ressalta que é da profissão a capacidade de ouvir, porém, destaca a importância de praticar uma “escuta ativa”, que consiste em prestar atenção no que está sendo dito e oferecer alternativas ao invés de julgar.
“Isso é um dos grandes auxílios que a gente presta no primeiro momento. Depois, é óbvio, é preciso buscar de ajuda médica, psicológica”, comenta.
Confira a íntegra da entrevista:
Como surgiu a ideia de desenvolver a Cartilha sobre Saúde Mental na Advocacia?
A ideia de desenvolver uma Cartilha sobre a Saúde Mental da Advocacia nasceu justamente do contato com advogados e advogadas no Conselho Federal da Ordem e é um projeto que eu desenvolvi, em 2018, com vistas a fazer uma campanha do Setembro Amarelo. A ideia inicial era criar um material para chamar a atenção dos advogados sobre as doenças e patologias que afetam a saúde mental e, quando alcançam seus extremos, acabam acarretando, inclusive, em tentativas ou suicídio mesmo. No sistema de justiça há informações de que há muito suicídio nas carreiras jurídicas no país, e não é diferente na Advocacia.
A repercussão desse projeto foi tão grande e a discussão que ele gerou no país afora motivou que nós, também no final de 2018, aprovássemos um programa nacional da saúde laboral e mental do advogado e da advogada brasileira. Diversas ações constam desse programa que vem sendo desenvolvido a partir de 2018. Em 2019 nós fizemos uma reedição da Cartilha e divulgamos. A OAB tem distribuído nas seccionais e todas as entidades que se preocupam, especialmente com a saúde mental do advogado, fizeram chegar palestras e informações e, ao invés de falarmos apenas do Setembro Amarelo, passamos a fazer o ano inteiro uma atividade que tenha por vista preservar a saúde dos profissionais.
Atualmente existe algum tipo de estudo consolidado sobre a saúde mental na advocacia brasileira?
Nós vamos fazer uma pesquisa que oriente a OAB no sentido de saber quais são as doenças que mais afetam os advogados. Essa pesquisa é complexa e nesse começo de ano já havia sido montada, mas em função da paralisação de muitas atividades, e também da atenção de saúde voltada à pandemia, nós deixamos para um momento oportuno, que agora se inicia novamente com o retorno das atividades para que a Ordem tenha em mãos o que a American Bar Association (ABA) já tem. Essa entidade já levantou dados e fez pesquisa com uma fundação de universidade para, justamente, fazer um diagnóstico da saúde mental e das doenças que afetam os advogados, como a depressão, síndrome do pânico, transtornos de ansiedade, síndrome de Burnout e, também, as decorrências disso, como a dependência de drogas ilícitas, lícitas para que a gente estabeleça também ações concretas nesse sentido.
É próprio da profissão lidar com a pressão e com as frustrações, situações, que, acumuladas, podem causar problemas. Como o advogado pode perceber que tem alguma coisa fora do eixo?
Como perceber é muito difícil e varia de pessoa para pessoa. Mas, o que a gente preconiza é que aquela tristeza momentânea que dura mais de duas, três semanas deve acender um sinal vermelho. É normal na vida a gente ter adversidades. Os advogados lidam com isso e tem em seu papel aquela palavra que a gente usa muito que é a resiliência. A gente está acostumado a batalhas diárias, seja de defesa do cliente, seja situações sociais ou na busca de justiça, mas quando isso afeta o dia a dia com sintomas que variam desde a tristeza permanente até um grau elevadíssimo que é o isolamento, a inapetência, o excesso de sono ou a falta dele, enfim, temos um contexto que indica a necessidade de procurar ajuda de um profissional.
Muitas vezes o psiquiatra acaba indicando uma medicação para que ocorra um equilíbrio químico no cérebro, porque a depressão ou o transtorno de ansiedade causam, quando em larga escala, um desequilíbrio químico cerebral. Então, muitas vezes, o profissional indica a medicação apropriada àquela patologia que o indivíduo apresenta ou, até mesmo, faz indicações de atividades como yoga, meditação e inúmeras outras. A ajuda profissional nos ajuda a entender o que faz bem para nós, porque estamos aqui, que parte a gente faz desse contexto e como lidar para que as adversidades não afetem a nossa saúde.
O desrespeito às prerrogativas profissionais pode ocasionar uma série de doenças ocupacionais, como a Síndrome de Burnout e o Transtorno de Ansiedade Generalizada. Como proceder ao identificar esse tipo de problema?
O desrespeito às prerrogativas é uma causa realmente de muita ansiedade para o exercício da Advocacia. Quando o advogado está exercendo o seu papel de defesa do interesse do jurisdicionado e é desrespeitado pela autoridade, isso causa muita frustração. Então, nós temos que lidar com essa situação de duas maneiras: uma é se preservando física e mentalmente e a outra é demandando a Ordem, que tem entre as suas atividades mais preciosas a Comissão de Prerrogativas nas seccionais, nas subseções e na OAB Nacional. Então, tudo aquilo que diz respeito à atividade do advogado tem a proteção da nossa organização, que protege, ao mesmo tempo, a cidadania não só ao profissional da Advocacia.
Depois de identificar algum tipo de transtorno, o indivíduo acaba sendo alvo do preconceito. Em alguns casos, os homens sofrem com o estigma de fraqueza e as mulheres, entre outros pontos, ouvem que a condição é decorrente de questões hormonais, por exemplo. Na sua opinião, o que deve ser feito para superar essa barreira do preconceito?
A Cartilha da Saúde Mental da Advocacia nasceu, justamente, de um grande objetivo: falar sobre os transtornos psíquicos que nos afetam e, falando sobre isso, permitir que as pessoas enxerguem a situação com outro olhar, porque já existe muito preconceito em torno do assunto. Quem quer contratar um advogado, ter um funcionário ou um servidor nos departamentos jurídicos das estatais, que seja uma pessoa que esteja permanentemente num estado catatônico, depressivo, que não tenha equilíbrio emocional? Ninguém confia numa pessoa dessas. E muitas vezes não se desconfia de que aquele estado é o ápice de uma doença que ninguém prestou atenção no início, nem mesmo a própria pessoa. Então, a ideia de se preservar a saúde mental também passa pela destruição do preconceito. Quando uma pessoa tem Burnout, ela não está com preguiça de trabalhar; quando alguém tem depressão ela não é uma pessoa autodestrutiva; quando tem transtorno de ansiedade ela não é uma pessoa histérica, nervosa, descontrolada.
É preciso falar sobre o assunto, debater entre nós e a comunidade sobre qual é o nosso grande papel na sociedade brasileira como advogados na preservação dos direitos. Mas também é preciso ter um olhar diferenciado para a Advocacia, pois aquelas pessoas que são muito fortes, lutam pelos direitos dos outros, também precisam de solidariedade, empatia, e, muitas vezes, também precisam de ajuda.
Além do preconceito, na sua opinião, o que mais impede um indivíduo de buscar ajuda para tratar algum transtorno mental?
Muitas vezes, a pessoa nem tem tanto problema com relação ao preconceito, mas ela não se percebe. Então são duas as barreiras: primeiro é o preconceito social de estigmatizar as pessoas com transtornos psicossomáticos decorrentes de depressão, síndrome do pânico, enfim… das doenças mentais. E a segunda dificuldade é a pessoa se perceber.
Então também visa a nossa campanha a necessidade de entender o seu processo, chamar atenção para que aquela tristeza, a sensação de que nada vale a pena, de que a vida não tem mais sentido, de que a pessoa é realmente uma fracassada, de que tudo de ruim acontece na vida dela –, tudo isso tem, na verdade, um fundo que precisa ser tratado, ser cuidado. E a pessoa às vezes não presta atenção. E isso pode ocorrer não somente com o advogado, pode ser com o cônjuge, um filho, um amigo, por exemplo. Por isso é importante entender esses processos e ajudar a saber se é uma desmotivação comum ou se tem existe mais alguma coisa por trás disso.
Eu sempre digo que o advogado é uma pessoa que escuta todo mundo. A gente precisa escutar o relato do problema e a pretensão do cliente com vistas a apresentar soluções, alternativas, estratégias. Quando vemos um colega de trabalho passando por algum tipo de situação nesse sentido, de alguma forma nós temos a capacidade de ouvir e praticar o que chamamos de escuta ativa. Essa escuta é a capacidade de prestar atenção naquilo que está sendo dito e não ter respostas prontas do tipo: ‘Tens que entender que isso acontece com todo mundo, eu também fico triste’. A resposta da escuta ativa é algo como: ‘O que eu posso fazer para te ajudar? Você já consultou um médico? Eu estou fazendo meditação, talvez te ajude!’. Isso é um dos grandes auxílios que a gente presta no primeiro momento. Depois, é óbvio, é preciso buscar ajuda médica, psicológica.
Na sua opinião, como a saúde mental deve ser abordada no ambiente corporativo?
Muito tem se falado nos escritórios, no ambiente corporativo a respeito de medidas que possam tornar a atividade mais leve, a vida mais feliz. Nós temos inúmeros programas nos escritórios de advocacia, e eu imagino que os RHs das empresas como a CAIXA devem se dedicar a isso. O importante é que a gente permita que esses programas e essas abordagens nos atinjam, porque nós temos uma tendência a também estigmatizar esse assunto, muitas vezes escutamos: ‘Ah, lá vem aquele pessoal falar sobre programa de final de semana para nos conhecermos melhor… isso não adianta de nada, eu não vou!’. Na verdade, os programas têm de ser abordados sim no ambiente corporativo, numa intenção de desenvolver, inclusive num cenário de coleguismo, de empatia, que a profissão é só um dos vértices da nossa vida. Nós temos a família, a espiritualidade, a saúde e essas coisas mínimas as vezes não prestamos atenção. Alguém dizer para nós o quanto são coisas valiosas e nós precisamos estar abertos a perceber tudo de uma forma diferente.
Gostou do assunto e quer saber mais?
“Se você realmente quer ser um bom advogado, deve ser um advogado saudável – e isso inclui saúde mental. A profissão jurídica está enfrentando dificuldades, e é preciso tomar medidas agora para lidar com o bem-estar dos advogados”. Esse é o tema de um relatório da Força-Tarefa Nacional sobre Bem-Estar dos Advogados americanos, intitulado O Caminho para o Bem-Estar dos Advogados: Recomendações Práticas para Mudanças Positivas, desenvolvido pela Comissão ABA de Programas de Assistência a Advogados, a Organização Nacional de Advogados, e a Associação de Advogados de Responsabilidade Profissional.