Série de conteúdos pretende estimular reflexão sobre a participação feminina na advocacia
Pela primeira vez na história, a Advocef é presidida por uma mulher. Em 2018, Anna Claudia de Vasconcellos assumiu o cargo, que durante 26 anos foi ocupado por colegas homens.
Assim como na Associação, a participação feminina na chefia de diversas instituições também é uma realidade recente. Um exemplo é o caso do Tribunal Superior do Trabalho (TST) – que, após 72 anos, tem uma mulher como presidente. A ministra Cristina Peduzzi tomou posse em fevereiro deste ano.
Ao longo do tempo, as mulheres conquistaram espaços e hoje representam 64% dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) com até 25 anos.
Mesmo assim, a participação feminina na advocacia ainda demanda muitos avanços, como o cumprimento total das prerrogativas e a extinção de desigualdades trabalhistas para as advogadas autônomas, que não têm direito à interrupção ou à suspensão legal de prazos de um processo durante o período de licença-maternidade, por exemplo.
Para
estimular as reflexões acerca do tema, a Advocef preparou uma série de conteúdos
especiais para o mês de março, em que se comemora o Dia Internacional da
Mulher. Contaremos histórias de advogadas que fazem a diferença dentro e fora
da CAIXA. Acompanhe.
A trajetória pelo direito de exercer a profissão
Desde que uma mulher exerceu advocacia no Brasil pela primeira vez, em 1924, até os dias atuais, muita coisa mudou. Myrthes Gomes de Campos atuou no setor de jurisprudência do Tribunal de Apelação do Distrito Federal e abriu caminho para outras mulheres no Direito.
Porém, a trajetória feminina na esfera jurídica sempre foi marcada por longos percalços entre um avanço e outro. Só na virada do século, mais precisamente em 2002, foi que uma mulher passou a ocupar um cargo no mais alto escalão da justiça brasileira.
Indicada pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, Ellen Gracie foi a primeira mulher a atuar como ministra no Supremo Tribunal Federal (STF). Ao tomar posse, ela foi pega de surpresa quando descobriu que não existia sequer um banheiro feminino no salão ligado ao Plenário, onde trabalharia ao lado de outros dez ministros. A situação vivida por Gracie deixou claro que a presença de mulheres não era esperada em alguns espaços, como na Justiça Federal.
Na avaliação da advogada e antropóloga Izabel Nuñes, a situação é reflexo de um passado em que as mulheres não tinham controle das próprias vidas, o que contribuiu para dificultar sua presença em diversas áreas.
“Essas mulheres partem de um lugar de desigualdade. É preciso reconhecer, olhando para a história, o que aconteceu ao longo dos séculos na sociedade ocidental, de controle e dominação sobre as mulheres”, afirma.
A especialista analisa que o movimento iniciado com as sufragistas, em busca do direito pelo voto, impulsionou o questionamento sobre a sociedade patriarcal, que tem se consolidado recentemente com a primavera feminista.
Maioria na base
Em 2017, o Brasil viveu uma situação inédita: quatro mulheres estavam à frente das principais instituições jurídicas nacionais. Eram elas: a procuradora-geral da República, Raquel Dodge; a presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Laurita Vaz; a advogada-geral da União (AGU), Grace Mendonça e a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carmem Lúcia.
Além de ser um marco histórico, o momento também significou um importante progresso para as mulheres. Mesmo diante dos desafios de atuar numa área historicamente masculina, a participação feminina nas carreiras jurídicas tem sido crescente. Dados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) mostram que, só em São Paulo, elas já representam cerca de 49% dos operadores de direito inscritos na Ordem.
Ainda assim, encontram dificuldades para ascender profissionalmente. Um levantamento feito pela consultoria Impulso Beta com algumas das maiores bancas advocatícias do país mostrou que, na base, em 8 dos 9 escritórios analisados tinham mais mulheres do que homens. Em contrapartida, o percentual de advogadas que figuravam como sócias nesses escritórios representava, em média, apenas 30%.
Barreiras à ascensão profissional
A socióloga Maria da Glória Bonelli analisou as barreiras que dificultam a ascensão das mulheres na advocacia brasileira e internacional. Entre outros pontos, ela acredita que a concentração das advogadas nas posições menos valorizadas da carreira é resultado de um “script sexuado”. O conceito é formado basicamente pela ideia de que a conciliação da vida familiar e profissional é atribuição exclusivamente feminina.
De acordo com o estudo, a ausência masculina na esfera doméstica contribui com a “escolha” das mulheres por trabalhos que lhes permitam ter maior controle do tempo, além de atuar em locais que lhes sejam menos hostis.
No artigo, Maria da Glória Bonelli aponta o capital social como um dos fatores que beneficiam os advogados no processo de profissionalização. Segundo ela, a entrada na profissão e a progressão nela dependem do acesso a grupos hegemônicos de poder que atuam como mentores e notáveis. Sendo assim, como o número de mulheres é menor no topo da profissão, elas têm mais dificuldade de constituir essas redes.
“As mulheres que conseguem superar as barreiras de ingresso como sócias são aquelas que melhor realizam o apagamento das diferenças, e o discurso sobre a conquista da igualdade de oportunidades é uma das formas de fazê-lo. Aceitar o “desafio” de ter que provar ser tão capaz quanto os homens é o outro lado da mesma moeda que busca tornar o gênero invisível”, diz a socióloga no artigo.
A disparidade entre homens e mulheres nos cargos de chefia é notória em diversas profissões, porém, esse é um fator que envolve muito mais do que a meritocracia. Conforme analisa a advogada Izabel Nuñes, a presença delas na chefia engloba oportunidade, vontade, suporte e disponibilidade para lidar com as consequências de abraçar a função.
“Além de ter menos oportunidades, imagine o esforço que uma mulher precisa fazer para assumir um cargo de chefia… ela precisa trabalhar muito, e às vezes, até mais do que um homem para mostrar sua competência”, diz a antropóloga.
A opção por ter filhos torna a ascensão profissional ainda mais desafiadora. Ao comentar o assunto, Nuñes ilustra um exemplo apresentado num estudo em que para manter a produtividade, uma advogada grávida continua despachando com a equipe horas antes de fazer um parto eletivo.
“Os cargos de chefia trazem às mulheres uma série de desafios, até corporais. Se a mulher tem vontade de ser mãe, como é que pode se afastar dessa função sem prejudicar sua carreira? São desafios que os homens não têm”, afirma a especialista.
Resistir para transformar o cenário
A primavera feminista, citada pela antropóloga Izabel Nuñes, contribui para o desenvolvimento do protagonismo feminino na sociedade. Segundo ela, o momento é decisivo, pois as mulheres estão mais dispostas a questionar seu papel na sociedade e, conscientes dos deveres como cidadãs, ampliaram a atuação em busca de uma sociedade igualitária.
Tudo isso para serem tratadas em suas diferenças e garantir que tenham o mesmo respeito e os mesmos direitos que os homens. “É uma questão de respeito e nem sempre é sobre igualdade, é diferença”, salienta.
Apesar de considerar a atual conjuntura favorável às transformações, Nuñes alerta sobre a recrudescência do autoritarismo, como resposta ao movimento das mulheres.
“Estamos num momento de muita mudança. Por isso se faz cada vez mais necessário que as mulheres cobrem a presença feminina em todos os espaços”, conclui.