Adriana Manta da Silva Juíza Substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região
O Brasil é um país alicerçado historicamente em grandes níveis de desigualdades sociais e econômicas, estruturadas sob a lógica da colonialidade, fruto de nosso histórico escravocrata, que reverbera no universo do trabalho, operacionalizando as reproduções dessas desigualdades a partir do cruzamento e convergência de marcadores que atuam como fatores hierarquizadores e de opressão, sobretudo de gênero, raça, classe, sexualidade e deficiência, os quais na realidade laboral costumam ser identificados por flagrante diferenciação em relação às condições de trabalho.
O ser humano enquanto ser social, portador de uma dignidade individual e coletiva, imerso em relações desiguais e de opressão, obriga aos direitos humanos a tentar garantir direitos e prerrogativas aos explorados e oprimidos, buscando relações laborais mais justas e equitativas, apesar de inseridas no sistema capitalista de produção (DA ROCHA, 2011).
O assédio moral é conduta que pode se verificar em diversos ambientes sociais, a exemplo de escolas, porém, é nas relações de trabalho que o tema vem suscitando amplo debate, por ser o citado ambiente apontado como propício para ocorrência do comportamento, diante da hipossuficiência vivida pela pessoa trabalhadora, associada ao poder diretivo atribuído ao empregador e às relações hierárquicas dele decorrentes, gerando uma assimetria de poder inerente a esta relação social e jurídica.
Verifica-se no Direito do Trabalho omissão legislativa em relação à definição do assédio moral e assédio sexual, cabendo à doutrina e jurisprudência juslaboral desenvolverem a temática. De maneira geral, a doutrina trabalhista conceitua o assédio moral como sendo a ocorrência de condutas psicológicas abusivas, intencionais e reiteradas, que buscam excluir um trabalhador ou atacar um grupo de trabalhadores, atentando contra a sua integridade psíquica, implicando em ofensa a direitos e garantias fundamentais. Assim, o conceito do assédio moral demanda análise não apenas jurídica, mas multidisciplinar, que se inicia como conduta inofensiva e segue através de ataques múltiplos, colocando a vítima frequentemente em posição de inferioridade, através de manobras hostis e degradantes (HIRIGOYEN, 2021).
A doutrina relaciona elementos constitutivos e acessórios que integram o conceito de assédio moral. Nesta senda, os elementos constitutivos do assédio moral, são aqueles requisitos que necessariamente haverão de concorrer, de forma conjunta, para que se possa verificar a sua existência, quais sejam: sujeitos, condutas lesivas não desejadas suscetíveis de causar um dano (de natureza psíquica, física, patrimonial), afetação à dignidade da pessoa, reiteração de condutas e relação com o trabalho (HIRIGOYEN, 2021).
Vale destacar que embora componha os elementos constitutivos do assédio moral, a repetição de condutas hostis e seu prolongamento no tempo não tiveram limites temporais ou numéricos fixados em doutrina ou jurisprudência trabalhista. Dessa maneira, não há uma definição de prazo exato ou aproximado de duração e/ou frequência das agressões para caracterizar o assédio moral, diante da complexa e singular realidade das vítimas e das diferentes possibilidades fáticas de sua expressão (GARCIA; TOLFO, 2011). Garcia e Tolfo (2011) citam pesquisas realizadas em diversos países, nas quais observou-se o tempo médio de duração do assédio moral, salientando que as pesquisas brasileiras indicam que a duração do assédio variava de três meses a mais de três anos.
Não há, portanto, um parâmetro numérico fixado na dogmática juslaboral para que se caracterize a efetiva ocorrência do assédio moral, mas a sistematização e repetição dos comportamentos hostis tem se apresentado como requisito essencial para a caracterização do assédio moral nas ações trabalhistas que objetivam a reparação da vítima.
O assédio sexual possui tipificação no Código Penal, art. 216-A, ali definido como o “ato de constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. Tal definição, no entanto, não considera que a prática assediadora frequentemente não visa a obtenção de favorecimento sexual e nem sempre é cometida por superior hierárquico, podendo o agressor ter intenção puramente discriminatória, constituindo violência de gênero no sentido de subjugar a mulher, demonstrando a sua misoginia, ou de simples exercício de poder do homem sobre o corpo da mulher, presumido disponível por ocupar o espaço público ao ingressar no mercado de trabalho (FERRITO, 2021).
A definição de assédio sexual no Direito do Trabalho, embora não prevista em lei, tende a ser mais ampla em comparação ao Direito Penal. O Ministério Público do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho conceituam o assédio sexual no ambiente de trabalho como “conduta de natureza sexual, manifestada fisicamente, por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra a sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando sua liberdade sexual”. Trata-se de um fenômeno estrutural, e não de um desvio individual, o qual configura um instrumento de controle social normalmente negado, ignorado ou naturalizado, no qual o assediador leva em conta a situação de vulnerabilidade da vítima e a circunstância de ocorrência em ambiente privado (FERNANDES,2017).
Necessário também (re) pensar o mundo do trabalho a partir dos vieses e estereótipos que reforçam marcadores sociais de opressão e refletem diretamente na discriminação das pessoas trabalhadoras, a exemplo de gênero e raça, tornando-as vítimas frequentes de assédio no ambiente de trabalho.
O debate acerca do assédio e violência, inclusive a violência de gênero, no ambiente de trabalho, fortaleceu-se a partir de 2019 com a edição da Convenção n.º 190 e Recomendação n.º 206 da OIT, que objetivam a eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho. A Convenção n.º 190 da OIT conceitua violência e assédio como um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou apenas a ameaça deles, realizados com frequência ou em única vez, de modo que visem, causem, ou sejam susceptíveis de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico, destinado a todas as pessoas inseridas no mundo do trabalho, incluindo estagiários(as) ou aprendizes, pessoas despedidas ou em busca de emprego, e as que exercem em geral os deveres ou a autoridade de empregador, nos setores público ou privado. O item “b” do artigo 1.º traz uma especial menção à violência de gênero, o que, mais uma vez, mostra que a OIT está atenta à realidade das mulheres no mercado de trabalho, as quais estão mais suscetíveis e vulneráveis às práticas de violência.
Contrapondo o novel conceito que norma internacional propôs ao conceito cristalizado na doutrina e jurisprudência, observa-se que a repetição da conduta hostil deixa de ser elemento essencial para a sua caracterização como assédio moral. Sob essa visão, o ato passa a ser considerado assédio ou violência, a partir da natureza da conduta e não da aferição quantitativa da sua ocorrência no caso concreto (NICOLADELI, 2021).
Dentre os elementos inovadores da Convenção n.º 190, vale destacar a ampliação subjetiva das pessoas destinatárias da proteção contra assédio e violência no mundo do trabalho, abarcando não apenas funcionários independente de sua condição contratual, mas também estagiários, aprendizes, voluntários, pessoas desempregadas, pessoas que tiveram o contrato rescindido, candidatos a emprego, nos setores público e privado, inseridos na economia formal ou informal, em áreas urbanas ou rurais. A ideia do local em que situações de violência e assédio podem ocorrer também toma contornos mais amplos na Convenção, incluindo espaços públicos e privados; locais destinados a descansos, refeição, instalações sanitárias e vestiários; durante viagens, eventos, ou atividades sociais relacionadas ao trabalho; por meio de comunicações relacionadas ao trabalho, inclusive e-mails, mensagens via aplicativos de comunicação, reuniões virtuais e outros; em acomodações fornecidas pelo empregador; e ao se deslocar para o trabalho.
Embora a Convenção n.º 190 da OIT ainda não tenha sido ratificada pelo Brasil, o país, como signatário do Tratado de Viena (1969), tem dever de cumprimento dos tratados por ele firmados de boa-fé. Isso quer dizer que os signatários dos tratados internacionais não poderão invocar o direito interno como justificativa para o não cumprimento das disposições internacionais. Vale, ainda, mencionar, que diante da ausência de lei trabalhista específica sobre assédio moral e assédio sexual, sendo os seus conceitos formulados através da doutrina e jurisprudência, a Convenção n.º 190 se apresenta como fonte efetiva para a produção acadêmica doutrinária, além de poder ser utilizada como fonte internacional de direito do trabalho, constando expressamente nas razões de decidir de eventuais demandas postas à apreciação do Poder Judiciário trabalhista.
A violência e o assédio no mundo do trabalho afeta diretamente a saúde das pessoas trabalhadoras, em especial a saúde mental, tendo impactos psicológicos, pessoais, sociais e profissionais, como o isolamento, a falta de confiança, baixa auto estima, sintomas físicos, podendo ocasionar o desenvolvimento de doenças psíquicas relacionadas ao trabalho, como depressão, síndrome do pânico e Síndrome de Burnout. Embora indenizáveis, os danos causados às vítimas de assédio moral e sexual são permanentes e irreparáveis, o que reforça a necessidade de atuação preventiva, inclusive de caráter educativo, em todos os ambientes de trabalho.
Com o advento da Convenção n.º 190 da OIT, a violência e o assédio no mundo do trabalho passam a ser rechaçados e intolerados pela comunidade internacional, orientando a adoção e implementação de políticas públicas e empresariais de prevenção e combate ao assédio, ponto fundamental na busca pelo trabalho digno e decente, pautado no respeito às singularidades das pessoas trabalhadoras e na observância dos direitos humanos fundamentais.
Diante da lacuna legislativa brasileira sobre assédio e violência no trabalho urge a necessidade de ratificação pelo Brasil da Convenção n.º 190 da OIT, instrumento que não apenas se coaduna como efetivamente promove valores e direitos constitucionalmente assegurados, dentre eles o direito ao trabalho digno e decente, o direito fundamental à saúde, especialmente considerado o viés psicossocial, o direito ao meio ambiente do trabalho hígido.
- REFERÊNCIAS:
BRASIL. Ministério Público Do Trabalho. Assédio Sexual no Trabalho – Perguntas e Respostas. Brasília, 2017. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—americas/—ro-lima/—ilo-brasilia/documents/publication/wcms_559572.pdf . Acesso em: 8 mar. 2022.
DA ROCHA, Ana Maria; JÚNIOR, José Albenes Bezerra; MONTINI, Paulo. Os Direitos Humanos e Fundamentais Nas Relações de Trabalho Sob a Ótica da Teoria Crítica. JURIS RATIONIS-ISSN 2237-4469, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2011.
FERNANDES, Denise Maria Schellenberger. Assédio Sexual nas relações de trabalho: um olhar a partir da teoria crítica dos direitos humanos. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.
GARCIA, Ivone Steinbach; TOLFO, Suzana da Rosa. Assédio Moral no Trabalho: culpa e vergonha pela humilhação social. Curitiba: Juruá, 2011.
HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. 19ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2021.
NICOLADELI, Sandro Lunard. A convenção 190 da OIT – O patamar civilizatório com mais igualdade e superação da violência e assédio nas relações de trabalho. Algumas tarefas para os sindicatos. In Assédio moral e sexual no trabalho: comentários à convenção nº 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) / Marco Aurélio Serau Junior (Coord.). Júlia Dumont Petry; Larissa Rahmeier de Souza; Vinícius A. G. Cidral. (Org.). Prefácio de Tatyana Scheila Friedrich. – Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021.
OIT. Organização Internacional do Trabalho. Convenção n.º 190. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—europe/—ro-geneva/—ilo-lisbon/documents/genericdocument/wcms_729459.pdf . Acesso em: 28 mar. 2022.
OIT. Organização Internacional do Trabalho. Recomendação n.º 206. 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—europe/—ro-geneva/—ilo-lisbon/documents/genericdocument/wcms_729461.pdf . Acesso em: 28 mar. 2022.