Todos são impactados, de forma ou outra, pelo advento de um Novo Código de Processo Civil. E desta regra não escapa o Supremo Tribunal Federal (STF), que tem no processo civil a principal ferramenta de trabalho para a preservação da supremacia da Constituição Federal.
Algumas disposições da novel legislação têm verdadeiro potencial de melhorar a qualidade da prestação jurisdicional brasileira. Em contrapartida, têm, também, enorme capacidade de multiplicar o número de processos no nosso mais importante Tribunal, dificultando sobremaneira (se não inviabilizando) o seu próprio funcionamento como Corte Constitucional.
Abaixo, breve incursão sobre algumas destas disposições, que – nesta importante fase em que se aguarda sanção presidencial do novo diploma – devem ser objeto de reflexão por todos os operadores do Direito do país. Longe de qualquer juízo de valor, trata-se aqui de examinar e projetar seus reflexos sobre o STF.
1. Julgamento e cumprimento de processos por ordem cronológica (art. 12). Estabelece-se que, doravante, o STF deverá obedecer a ordem cronológica de conclusão para proferir seus acórdãos. As críticas ao dispositivo já são conhecidas e povoaram, semanas atrás, as páginas deste portal (http://jota.info/o-novo-cpc-e-o-fim-da-gestao-na-justica). O que aparenta ser simples imperativo de igualdade, traduz-se em verdadeiro atentado à racionalidade do ato de julgar. Pois o STF perderá, a partir da vigência do Novo CPC, o controle de sua pauta de julgamentos. A definição de quando julgar as ADIs, ADCs, ADPFs, Reclamações, Repercussões Gerais, Recursos Ordinários, Recursos Extraordinários (não repetitivos), entre outros, deixa de pertencer ao Relator ou ao Presidente do Tribunal. Passa a ser definida pela cronologia de conclusão. E pouco importa se o assunto já esteja suficientemente maturado, debatido, refletido, pronto para a decisão que vinculará, como regra, todos os demais órgãos do Judiciário brasileiro. A determinação esbarra, inclusive, na função nomofilática da corte, que, mesmo identificando a necessidade, o interesse público, na pacificação imediata de determinadas questões jurídicas, ficará obrigada a julgar antes casos de menor relevância.
2. Juízo de admissibilidade do Recurso Extraordinário diretamente no STF (art. 1.027, parágrafo único). O juízo de admissibilidade do Recurso Extraordinário, isto é, a análise da presença de seus pressupostos recursais (prequestionamento, matéria de direito e de natureza constitucional, tempestividade, etc.), deixa de ser atribuição das cortes inferiores (TJs, TRFs, STJ, TST e TSE) e passa a incumbir, apenas, ao STF. Substitui-se o modelo de controle compartilhado de admissibilidade do RE (diluído entre dezenas de desembargadores) por um modelo concentrado, onde competirá, exclusivamente, ao relator do recurso no STF, decidir se ele é admissível. Terá o STF, com seus apenas 11 Ministros, condições humanas e materiais para suportar a recepção e análise de cabimento de todos os REs do Brasil? A regra não acaba por incentivar o ajuizamento de REs, afinal, analisados diretamente por “alguém lá de Brasília”? Com tantos REs pendentes de análise da admissibilidade (inclusive em vista da cronologia do art. 12), sobrará tempo útil para o controle concentrado de constitucionalidade? O que dizer então das demandas de competência originária? Se em 2014 já houve um acréscimo de 8,5% de processos entrados no STF em relação a 2013, o que esperar do ano de 2016, quando da entrada em vigor do Novo CPC?
3. Efeito suspensivo do RE (arts. 992; 1026, § 5o). Como consequência direta da ausência de compartilhamento do juízo de admissibilidade com os demais Tribunais, as tutelas de urgência, destinadas a atribuição de efeito suspensivo aos recursos extraordinários, serão apresentadas diretamente ao STF. Restarão superados no particular os enunciados de súmula 634 e 635, com o consequente aumento nos trabalhos da Corte.
4. Fundamentação exaustiva das decisões judiciais, inclusive de todos os argumentos que poderiam infirmar a conclusão do julgador (art. 486, § 1º, IV). Todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas, conforme art. 93, IX, da CF. E não são raras decisões do próprio STF anulando outras decisões judiciais pelo vício de falta de fundamentação. O Novo CPC, contudo, vai além. Pretende subtrair do STF a definição do que é a fundamentação, cujo conceito deixa de ser acadêmico/jurisprudencial e passa a ser legal. Além disso, extirpa-se o entendimento sedimentado de que o órgão julgador não é obrigado a enfrentar todos os argumentos apresentados pelas partes. Doravante, a fundamentação compreenderá os argumentos do vencedor. Mas deverá, também – sob pena de nulidade –, enfrentar todos os argumentos do vencido capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador. Será possível conciliar o volume de feitos que aportarão no STF, inclusive por conta do modelo de admissibilidade concentrada de cabimento do RE (art. 1.027, parágrafo único, CPC/2015), com a necessidade de afastamento dos argumentos do vencido? Em que intensidade os necessários votos mais sucintos dos Ministros do STF, darão margem a seguidos recursos de embargos de declaração?
5. Reclamação (art. 985, §§ 1º e 3º). A reclamação ganha no Novo CPC um status jamais visto no sistema brasileiro. Servirá, para além de preservar a competência do STF e garantir a autoridade de suas decisões (art. 102, I, “l”, da CF), também para assegurar a observância das decisões em controle concentrado de constitucionalidade, de enunciado de súmula vinculante e de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos (art. 985, III e IV, CPC/2015). Mas competindo a sua apreciação diretamente ao órgão jurisdicional cuja autoridade se pretenda garantir, não há risco de que esse atalho multiplique o número de reclamações no STF? Não há risco de que o sucedâneo da reclamação se converta em verdadeiro recurso per saltum, concentrando no STF o controle de todas as decisões judiciais do país proferidas em desconformidade com suas decisões em controle concentrado, suas súmulas e seus precedentes em recursos repetitivos? O problema é especialmente relevante, considerando que o Novo CPC declara vinculantes os precedentes, mas não estipula sanções àqueles que não observam tal força vinculante, deixando todo o trabalho para a reclamação.
6. Sustentação oral (arts. 935 e 1.039, § 5º). Nos termos do art. 131, § 2º do RISTF, não se admite a sustentação oral no agravo (cabível das decisões monocráticas do relator) e embargos de declaração. No modelo proposto pelo novo Código, o art. 935, VII, dispõe ser admitida a sustentação oral “no agravo interno originário de (…) recurso extraordinário”, regra reforçada pelo art. 1.039, § 5º, que assegura o direito à sustentação oral no julgamento conjunto do agravo com o recurso extraordinário. Não se está aqui a menosprezar a sustentação oral; ao contrário, trata-se de atividade de grande relevo no processo. Contudo, conhecendo um pouco a realidade do STF (e o volume de recursos existentes), é fácil intuir que o número de sustentações orais crescerá exponencialmente, especialmente nas turmas. E, indaga-se uma vez mais: há estrutura para isso, com cinco ministros em cada uma das Turmas? Necessário que haja uma compatibilização de interesses. De que vale aumentar o número de sustentações se isso irá atrasar um sem número de julgamentos? A sustentação faz sentido para recursos onde ela possa efetivamente produzir efeitos. Longe de ser vista pela perspectiva de um direito inderrogável do advogado, a sustentação é um ato processual cuja funcionalidade tem que ser analisada na perspectiva do sistema.
7. Prequestionamento (arts. 939, § 3o, e 1022). Afrouxa-se o prequestionamento como requisito para submissão da causa ao STF, consequentemente ampliando-se o cabimento do recurso extraordinário. A integração automática do voto vencido e das questões alinhadas em embargos declaratórios para seus fins importa numa ampliação virtual (ficta) do prequestionamento. Não é mais indispensável que a questão objeto do recurso tenha sido discutida no provimento jurisdicional recorrido, para sua submissão na via do extraordinário, pois o prequestionamento também virá pelo voto vencido ou pelos simples embargos posteriormente interpostos visando ao prequestionamento. Logo, mais recursos extraordinários deverão ser conhecidos.
8. A afetação sob o regime dos repetitivos pode justificar um novo recurso (art. 1034, § 10, IV e § 13, II). A afetação do recurso ao regime dos repetitivos, com a seleção dos recursos representativos da controvérsia e suspensão dos feitos com a mesma tese, será passível de ataque direto e imediato, não mais só no momento subsequente de aplicação da tese. Consequentemente, incrementam-se os trabalhos dos Tribunais, inclusive do STF quanto aos recursos tramitando na própria Corte, já que além da análise das hipóteses de distinção, ainda restará um agravo interno eventualmente por julgar contra referida decisão.
9. Criação de agravo contra a decisão que aplicar a repercussão geral (art. 1039, III). Contra a decisão que aplicar a repercussão geral abrir-se-á a via do agravo, com a consequente superação da jurisprudência do STF erigida como defesa da própria racionalidade do instituto, que remete ao próprio Tribunal de origem que aplicou a repercussão geral, a análise sobre a (in)correção da decisão. No ponto, expressivo o voto da sempre Ministra Ellen Gracie na reclamação no 7.569-SP. Mais um recurso para o STF julgar.
10. Ampliação dos prazos de todo e qualquer agravo (arts. 217 e 1067).Todos os agravos, ainda que regimentais, passam a ter o prazo de interposição em quinze (15) dias, computados apenas em dias úteis, facilitando, consequentemente, a possibilidade de interposição do referido recurso. Mais prazo. Possibilidade de mais recursos.
11. Limite máximo dos honorários recursais (art. 85, § 11). O Novo CPC traz técnica especificamente desenhada para dissuadir a interposição de recursos, a sucumbência recursal, ou seja, a possibilidade de aumento do valor relativo aos honorários advocatícios na hipótese de interposição de recursos. A parte, antes de recorrer, deve agora fazer juízo quanto à probabilidade de êxito. Sabe que, se sucumbir, poderá piorar sua situação no processo. Esta regra, de fato, traz incentivos econômicos para a não interposição de recursos, especialmente daqueles com baixa possibilidade de êxito. No entanto, não poderia ela servir como elemento de restrição de acesso ao STF? Não prestará para controlar o volume de recursos na Corte? Acreditamos que não. E isto por uma razão muito simples. O valor dos honorários recursais é restrito pelo Novo CPC, ao teto do processo de conhecimento, e diante da estrutura prolifica recursal de nosso sistema, na melhor das hipóteses, já teríamos antes um julgamento de apelação, em segundo grau, além de outro possível julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça. Em ambos esses casos, muito provavelmente o limite de fixação de honorários recursal já deverá ter sido atingido, reduzindo significativamente a eficácia dessa regra em filtrar os recursos extraordinários. Em outras palavras, quando da interposição do RE provavelmente os honorários recursais já deverão ter atingido seu limite, e o recorrente não “terá nada a perder” ao interpor seu recurso.
Em remate, restam algumas questões.
Não estaria o CPC/2015, pelas 11 (onze) disposições retro apontadas, a afastar o Supremo da sua real vocação como Corte Constitucional? A facilitação de acesso à Corte, e o estabelecimento da cronologia na ordem de julgamentos, não impedirá atuação do STF nas causas de maior relevo para a sociedade? Estaríamos tornando ao sistema em que o STF atuaria tal qual um tribunal de revisão (TJ/TRFs)? Esse movimento do Novo CPC não contraria o ideário de concentrar nas cortes superiores, apenas, o julgamento das grandes teses e de questões com repercussão geral (vide a PEC 209/2012, que trata da criação da repercussão geral da questão federal no Recurso Especial)?
O debate está posto.
* Luiz Dellore é mestre e doutor em Direito Processual pela USP. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor de Direito Processual do Mackenzie, EPD, IEDI e IOB/Marcato e professor convidado de outros cursos em todo o Brasil. Advogado concursado da Caixa Econômica Federal. Ex-assessor de Ministro do STJ. Membro da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e diretor do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo).
* Fernando da Fonseca Gajardoni é professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Doutor e Mestre em Direito Processual pela USP (FD-USP). Juiz de Direito no Estado de São Paulo
* Andre Rocha é doutor e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor Adjunto em Direito Processual Civil da FND-UFRJ. Membro do IIDP, IBDP, CBAr, IAB e CEAPRO. Advogado.
* Marcelo Pacheco Machado é doutor e mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP. Professor da FDV – Faculdade de Direito de Vitória. Advogado.
* Zulmar Duarte de Oliveira Junior é advogado. Professor. Pós-Graduado em Direito Civil e Processual Civil. Membro do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros) e do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo)
(artigo cedido por Luiz Dellore, advogado da CAIXA lotado no JURIR/SP, e publicado originalmente no JOTA)